Boiadeiro Severino

  XETRU MARROMBA XETRU!.... DAI-ME LICENÇA PARA UM CAVALEIRO, para que eu possa aqui prosear com vocês, sim, prosear porque quem conta história bonita são os espíritos de grande hierarquia, eu sou apenas um cavaleiro xucro, mas fiel a minha sorte e a minha raiz do mato e da terra e, principalmente, aos meus bichos. Deve ser por isso que esta linha me escolheu apesar de muitos de vocês ainda se perguntarem o porquê estou nessa e não em outra, eu tenho certeza de quem me escolheu e porque estou aqui e isso basta, pois vocês fantasiam muitas coisas e as vezes até me envergonho de poder ver algumas dessas fantasias, mas de real o que vocês têm? E prestem bem atenção: não estou aqui menosprezando o sonho de vocês. Mas sim as basteiradas que sou obrigado a ouvir, mas deixaremos isso para outra oportunidade, pois hoje os olhos se enchem de alegria e saudade por poder prosear dessa minha vida dura, mas vivida. Isso é outra coisa que vocês não sabem fazer, viver em época de fim do mundo, como muitos de vocês chamam, o que mais vejo é a perca de tempo. Mas quem sou eu para exigir de vocês se nem vocês fazem? Pois aqui deixo um alerta: o que vocês estão chamando de fim, o Homem Dono de todo o gado está chamando de começo, eu sei que vocês esperavam o fogo, a água, os tremer de terra, mas estes não virão.

"Já falei muito sobre vocês... para vocês sou Boiadeiro Severino, graças a minha mãe Iansã fui batizado com este nome em um dia de tempestade em que a bandeira branca de meu pai nem tremulava de tão encharcada, mas antes disso, bem antes de merecer este mérito trabalhoso, meu pé pisou no chão vermelho do sertão seco, em uma casa feita de barro para alguns irmãos e uma velha feiticeira dona das habilidades das ervas e dos benzimentos. O homem que me fez logo se foi montado em um lombo de cavalo atrás daqueles que em nome da miséria exploravam, matavam e se divertiam com a desgraça alheia, eu como mais velho fiquei em seu lugar e naquela época não era como alguns de vocês imaginam: eu de roupa de couro com berrante na mão em um mar de bichos brancos tocando a boiada no pasto. “EEEEE BOIIIIIII!” foi algo que nunca tive a oportunidade de gritar em minha vida, eu corria quase sem proteção pela caatinga, entre a vegetação espinhosa, atrás de bichos selvagens em busca do trabalho duro e do sustento farto servido com farinha d’água e muitas vezes frio para não acender fogo e chamar atenção daqueles que um dia foram instrumentos para que eu retornasse a vida eterna. Quanto tempo estou aqui eu não lembro e não me importa, mas um dia depois de conseguir algo como alimento, sentado no lombo do único animal que tinha, chego ao que conhecia como único lar e o mesmo estava ocupado por homens bem vestidos de jaleco de couro, com roupas cheias de adereços e belos chapéus na cabeça; no chão já estavam os corpos de alguns dos meus irmãos, minha mãe chorava ajoelhada no terreiro com um facão ameaçando aquela vida que já vivia ameaçada, ela como sempre se mantinha firme e pedia aos deuses que ela acreditava em oração para que aquilo acabasse logo, o que eles queriam? Os filhos dela para seu exército de maldade assim como meu pai, porém meus irmãos eram fracos, alguns com doenças outros fracos da fome. Nós cuidávamos deles na lida do dia-a-dia, ao me verem imaginaram que o único que se juntaria ao bando seria eu, porém eu não aceitei e diferente do lindo ponto que vocês cantam quando minha mãe se despediu de mim eu não estava em um lombo de cavalo e sim sendo arrastado por ele até não sobrar nada de mim. Imaginem, ser arrastado por dias na caatinga, quando acordei a minha revolta era maior que minha dor e com a desculpa de fazer justiça muitos sofreram com minhas chicotadas."

"Me tornei carrasco de mim mesmo, mas um bom pai nunca abandona o filho e em um dia a oportunidade bateu a minha porta, em uma das investidas do povo do cangaço da falange de seu Virgulino fui levado a cidade espiritual de Aruanda, para mim aquilo era uma prisão e mais uma vez pelos homens tão parecidos pelos meus algozes. Fiquei em uma prisão magnética, todos os dias eu era visitado por uma equipe de boiadeiros e um preto velho, “Seu” Gentil, “Seu” Gentileiro e “Seu” Zé da Porteira eram figuras presentes no meu tratamento, também não posso deixar de agradecer aqueles que me alimentavam e preparavam os meus remédios para a alma: um índio amigo, de quem hoje carrego o nome e, seu Antonio do cangaço quem comandava aquela prisão hospital."

"Perdi muito tempo com meus ódios e pensamentos fantasiosos e no que isso me levou? Em lugar algum. Escolhi a linha de boiadeiros depois de muito tempo, uso o nome de um índio e o chapéu de um cangaceiro para nunca me esquecer de onde eu vim, peço que a bandeira branca de meu pai cubra as minhas ações e que um dia dentro da casa de caridade a qual fui destinado a depurar meus erros possa ter a honra de escrever minha história, pois como disse aqui: eu sei qual é o meu lugar e ainda sou uma pedra pequena perto de tantas joias. Que nunca falte no coração de vocês a gratidão pelo chão sagrado que pisam, pois, a sina de cada espirito que pisa no chão de Umbanda é muito maior do que vocês e suas mentes fantasiosas podem imaginar, se realmente soubessem não perderiam tanto tempo."

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