Maria Navalha

 - Rir hoje é meu maior desafio, pois como diz o poeta viva a beleza no sorriso branquelo, demorei para entender o que ele queria dizer e, em meio a tantas desgraças e sofrimento como sorrir? Mas eu escolhi sorrir, não de dentes abertos como vocês acham que se deve sorrir. Meu sorriso vem da alma e muitas vezes nem chega a boca e para no meu coração, isso também foi outra coisa que aprendi: que  o meu coração é algo sagrado, meu templo mais valioso e por isso que hoje não permito que nenhum sentimento que não seja necessário pise ou faça morada em meu templo sagrado. Diferente do que vocês pensam eu não sou 50% amor e o outros 50% ódio ou seja lá como vocês chamam meu trabalho, eu sou toda amor e isso não me impede de fazer o que tem que ser feito dentro da lei, eu não preciso ser só chamego para provar que sou o próprio amor de Iansã forjado no fogo e moldado no vento, prefiro ser quem sou e ter relações fortes com meus filhos ou afilhados. Diferente de vocês cheios de sorrisos, abraços e amor, mas afundados em uma areia movediça sem um pingo de alicerce nas relações com vocês e com o próximo, tudo tão frágil e sem base aonde qualquer vento destrói aquilo que parecia eterno, se sinto pena de vocês? Não, pois como disse: nesse peito só entra coisas que permito e sei que um dia o véu da ignorância vai mostrar que chamar ou outro de “amigo” vai muito além de sentar em uma mesa de bar com um copo cheio de amargura e desapego.

"Mas, vamos lá ao que interessa. Pois, como muitos dos que aqui passaram eu também não sou de me apegar as palavras e, se for para ser sincera, eu nem delas gosto. Tanto sou do tipo que prefere o exemplo, até admiro os tagarelas que sabem usar bem as palavras e direitos, mas abomino os espertos que se acham malandros! Coitados de vocês em acharem que só as palavras bastam! E tenho uma coisa a dizer: as palavras lindas de vocês não servem nem para afiar a lâmina da minha navalha! Quem dirá como exemplo?! Sim, eu não as suporto e meus tutores ainda dizem que eu preciso aprender a falar mais, pois só ouvir e não agir também é um erro, estou trabalhando isso (risos altos)!"

"Para vocês, sou Maria Navalha. Para mim, isso basta e venho aqui não para contar uma linda e fantasiosa história que vocês alimentam em suas mentes, Navalha a dona do cabaré, a rainha do cais e botecos boêmios me incomoda muito! Essa fantasia desrespeitosa não só comigo, mas principalmente com a desvalorização das damas que realmente vivem e viveram essa vida em nome seja lá do que elas acreditam ou acreditavam. Sim, eu andei na beira do cais, sim, eu frequentei a alta boemia e sim, eu gosto da minha cerveja gelada, mais isso não te dá o direito de me rotular ou me julgar, pois o que mais abomino é a falação que vocês chamam de fofoca, andava nesses lugares com minha navalha salvando e cuidado daquelas que não tinham o amparo nenhum dos donos da sociedade por direito adquirido na violência, fui conhecida sim, pelo corte da minha navalha, mas ela nunca cortou quem não merecia! Pelo menos era isso que eu pensava, ela buscava quem estuprava e violentava sonhos, se fui uma justiceira, não sei. Pois, não conhecia a justiça antes de chegar aqui, essa é outra coisa que quando no corpo de carne nós achamos que sabemos o que é, mas não sabemos! Coitados de nós e coitado do outro, mas o que os coitados fizeram para estar ali? Eu sei o que fiz para chegar aqui, e você sabe por quê vive esta vida? Não tive uma vida ruim, sempre tinha alguém para me estender a mão, eu que cega pela justiça sempre achei que merecia mais do que tinha e na verdade já tinha demais, não sei como me tornei o que sou hoje, na verdade sei... Mas esta história é longa e vou tentar resumir, pois também há coisas aqui dentro que são só minhas."

"Muito cedo ganhei o mundo, filha de um homem do cais não tem muitas chances dentro de casa. Aonde a dor física é a única coisa que se tem, minto, pois a dor vem com fedor de álcool. A mistura desses dois até hoje me embrulha o estomago, fui conhecer a rua e logo um bom malandro me ensinou o jogo da vida e não vejo problema em dizer que vivia de pequenos golpes e a vida foi me mostrando os maiores. Comecei a fazer pequenos serviços para mulheres que sofriam, sim eu e meu parceiro íamos em busca de homens que as maltratavam. Entre essas mulheres comecei a ganhar fama pelo corte da minha navalha e pelo gingado faceiro que carregava, só que como disse antes: a minha justiça me cegou e a ganancia cegou meu parceiro, e aí fui traída. Meu parceiro se tornou o que vocês chamam de cafetão e eu virei inimiga daquele que amava, mesmo amando-o ele não podia escapar da minha justiça e quando o fio da minha navalha cortou aquele que um dia me amara, também cortou o pouco de humanidade que restava em mim. “Mas senhora, você fazia o bem!” muito de vocês estão pensando e vibrando como se eu fosse uma heroína, mas minha consciência sabia que aquilo só era vingança, pois os fins não justificam os meios, sempre fui uma criança se escondendo atrás de uma justiça que nunca existiu, se me arrependo? Não, pois na hora da agonia as orações das mulheres que eu ajudei foi a luz que me levou a um refúgio criado pela energia feminina e por mulheres que como eu, praticaram atos muito à frente do seu tempo e sem ser entendidas padeceram na mão de uma sociedade cheia de limitações morais. Como cheguei aqui, contarei em outra oportunidade, mas escrevo diretamente a vocês, afilhados de Maria Navalha, não para ser vista como um mártir, mas para que minha palavras sirvam de exemplo e mudança: aonde existe amor não há espaço para a futilidade ou egoísmo, se chamar o seu amigo de irmão seja fiel e não deixe que o seu egoísmo destrua uma jornada e, principalmente, não confunda justiça com seus caprichos ou futilidades, pois ser malandro é principalmente ser fiel aqueles que um dia te estenderam a mão, e é por isso que a minha lamina hoje protege principalmente aqueles que um dia eu fiz mal e que por caminharem no meu caminho muitas vezes se perderam na escuridão. Cada um tem o seu caminhar, mas nessa teia chamada eternidade vocês tem responsabilidades pelos que se ligam a vocês. Axé!"

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